Isângelo Senna
Doutorando em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações. Pesquisador no Influência.
O artigo Broken Windows: The police and neighborhood safety de George L. Kelling e James Q. Wilson foi publicado em 1982 na revista The Atlantic. Fato curioso é que essa revista, hoje com mais de 160 anos, não é um periódico científico. Ainda assim, os argumentos defendidos por Kelling e Wilson são conhecidos pelo epíteto de Teoria das Janelas Quebradas (ou Broken Windows Theory) e, desde então, vem recebendo forte atenção não apenas da comunidade acadêmica, mas principalmente de gestores públicos.
Os autores iniciam o artigo se referindo a uma ação de segurança pública ocorrida na década de 1970 no Estado americano de Nova Jersey. Na ocasião o Estado financiou a implementação de policiamento ostensivo à pé em 28 cidades. Em que pese a resistência para com essa modalidade de policiamento que se encontrava em descrédito, o programa foi levado à frente. Cinco anos depois, estudos empíricos da Police Foundation mostraram que, embora não tenha havido impactos significativos nas taxas criminais, verificaram-se menores escores de medo do crime e melhor avaliação da polícia por parte do público onde o programa foi implementado. Na mesma direção, os policiais do policiamento à pé mostraram posturas mais positivas em relação aos cidadãos do que seus colegas escalados no policiamento em viaturas.
O artigo sugere que as pessoas não estavam enganadas quanto à eficácia do policiamento à pé. Em verdade, tão quanto o crime propriamente dito, a comunidade pesquisada temia ser perturbada por praticantes de comportamentos antissociais e imprevisíveis, como prostitutas, drogaditos e portadores de transtornos mentais. O policiamento à pé permitia que o policial conhecesse quem eram as pessoas que frequentam o bairro e as distinguia dos estranhos ao ambiente. A familiaridade com a área permitia que o policial identificasse, com ajuda do público, tornasse as regras informais estáveis na comunidade. Consequentemente, havia a preservação da ordem.
O texto segue explicitando o que é a Teoria das Janelas Quebradas. Para tanto, os autores recorrem ao experimento realizado por um dos psicólogos sociais mais influentes até os dias de hoje, Philip Zimbardo. O mesmo pesquisador do experimento da prisão de Stanford (Zimbardo, 2011), em 1969 colocou veículos sem placa e com ares de abandono no Bronx (Nova York) e em Palo Alto (California). No primeiro caso, o vandalismo e a destruição do carro ocorreu de forma rápida (10 minutos) e por pessoas ordinárias da comunidade. Já em Palo Alto, bastou uma janela quebrada, para que a integridade do veículo que já durava semanas fosse completamente violada. A partir desse exemplo, Kelling e Wilson passam a argumentar como as desordens físicas geram desordens comportamentais que, por sua vez, levam a crimes e ao medo do crime em qualquer comunidade.
Há também um debate interessante sobre o papel da polícia, algo já tratado em uma obra co-autorada por Wilson sobre as mudanças sofridas pela polícia ao longo da história. De uma agência responsável pela ordem pública, a polícia passou a se ocupar da prevenção de crimes apenas no século XX. Até então, essa era uma atribuição de natureza eminentemente privada. Prevenção criminal, solução de crimes e realização de prisões passaram a ser temas mais afetos à polícia apenas com a explosão de crimes observada a partir da década de 1960. Contudo, segundo os autores, com o passar do tempo a relação da preservação da ordem com a prevenção criminal deixou de ser algo óbvio para a polícia ostensiva.
Em seguida o trabalho aborda as diferentes interações com a comunidade permitidas pelo policiamento à pé e pelo policiamento motorizado. Apenas o primeiro permitiria aos policiais realmente se envolverem com a comunidade por meio de relacionamentos pessoais e efetivos. Inclusive, essa seria a melhor forma da polícia contribuir para a preservação da ordem e para o reforço das regras informais em vigência na comunidade.
Um desafio, entretanto, seria conjugar o papel de mantenedora da ordem com o de agência de law enforcement da polícia. Kelling e Wilson citam que nas duas décadas que antecederam o artigo, a polícia estava experimentando esse novo papel pelo qual ainda não havia passado. No lugar da prisão ser uma medida-meio e excepcional para a preservação ou restabelecimento da ordem em uma determinada comunidade, agora passava a ser um fim em si mesmo. Além disso, a prisão teria passado a existir apenas como forma de se reforçar a importância dos cidadãos cumprirem as leis. Por outro lado, os policiais passaram a ter menos autonomia para impor a ordem, por não poderem usar medidas restritivas de direito que não estivessem previstas em regras formais e universais. Os efeitos da luta antimanicomial sob o trabalho da polícia é sutilmente citado no texto. A agenda anti-institucionalização teria retirado dos policiais um instrumento importante para o afastamento de ébrios e doentes mentais das ruas. Por outro lado, um ilimitado poder discricionário por parte da polícia poderia ser usado de forma distorcida e causar tensões raciais, por exemplo.
Como vias para a solução da dicotomia entre preservação da ordem e aplicação stricto sensu da lei, os autores sugerem que algumas iniciativas tomassem escala. Um caminho seria a própria comunidade assumir o papel de manutenção da ordem, sem precisar apelar para instrumentos burocráticos e de repressão formal de más condutas. Como exemplo de iniciativas do tipo, o texto cita programas conduzidos por civis voluntários desarmados, como “vigilantes” e “anjos da guarda”.
Os autores sugerem algumas medidas para se enfrentar a queda brusca no número de policiais à época. A contratação de policiais de folga por algumas comunidades poderia gerar resultados mais efetivos do que a contratação de seguranças privados. Outra opção seria policiais, mesmo no patrulhamento motorizado, randomicamente realizarem a fiscalização de posturas em estações de metrô e ônibus. O reforço de regras relativas ao fumo, à ingestão de bebida alcóolica e de condutas antissociais poderia trazer para esses locais o mesmo clima civilizado dos aeroportos, por exemplo.
O último recado dos autores é pelo reforço do papel da polícia frente à preservação da ordem pública. A polícia deve buscar proteger a comunidade da mesma forma que protege o indivíduo. Essa visão deveria ter impacto na formação dos policiais. Porém, à comunidade caberia a tarefa de se manter as janelas intactas ou reparadas.
Algo que precisa ser alertado é o risco da transposição da abordagem em seu sentido literal para contextos que não o dos Estados Unidos ou de países com semelhante perfil cultural, como Canadá, Inglaterra e Austrália. Dois exemplos de encaminhamentos propostos pelos autores fazem parte da realidade brasileira, mas com resultados nefastos para a segurança pública e para a integridade física de seus agentes. O emprego paraestatal de vigilantes civis e ex-militares em locais como Rio de Janeiro pode ser associado à formação de milícias, que hoje em nada se diferem de outros grupos criminosos. Já o trabalho do policial militar na condição de segurança privada no horário de folga, além de carecer de respaldo legal no Brasil, representa grande parte da mortalidade desses agentes por causas externas (Fernandes, 2015; Minayo, Souza & Constantino, 2007).
Em que pese tratar-se bem mais de um ensaio do que de um trabalho acadêmico propriamente dito, o artigo de Kelling e Wilson articula vários trabalhos com experiências empíricas, inclusive com diversos inputs da psicologia social e da psicologia ambiental. Mesmo não explicitando termos como difusão de responsabilidade, ignorância pluralística, apego ao lugar e espaços defensáveis, esses conceitos permeiam todo o trabalho. Isso mostra o quanto a psicologia tem a contribuir para a prevenção criminal e a redução do medo do crime. O mesmo vale para os aportes da sociologia urbana da Escola de Chicago que estão subjacentes nos argumentos dos autores, ainda que não são explicitamente declarados. Um exemplo disso se verifica quando Kelling e Wilson praticamente descrevem o processo invasão-dominação-sucessão (Freitas, 2002), ao relatar as etapas de substituição dos usuários legítimos dos espaços por grupos de delinquentes.
Da leitura do artigo, infere-se que a criminalidade deve ser combatida no nível local e em sua gênese: as pequenas desordens físicas e comportamentais presentes no quotidiano da comunidade, como mostramos em artigo científico recente sobre parques públicos (Senna, Iglesias, & Vasconcelos, aceito). O exemplo mais relevante de aplicação desse princípio foi o programa Tolerância Zero, levado a efeito pela Prefeitura de Nova York. O sucesso desse programa levou a Teoria das Janelas Quebradas e seus próprios autores a alcançar enorme popularidade nos anos 1990 (Bratton & Knobler, 2009). Não há dúvidas que, com as devidas adaptações culturais, os princípios e estratégias em realce no artigo ainda hoje podem gerar insumos para pesquisas e políticas públicas no Brasil.
Referências
Bratton, W. & Knobler, P. (2009). The Turnaround: How America’s top cop reversed the crime epidemic. New York: Random House.
Fernandes, A. (2015). Vitimização policial: Análise das mortes violentas sofridas por integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo (2013-2014). EAESP-Escola de Administração de Empresas de São Paulo.
Freitas, W. C. P. (2002). Espaço urbano e criminalidade: Lições da Escola de Chicago. São Paulo: IBCCRIM.
Martin, J. P., & Wilson, G. (1969). The police: A study in manpower – The evolution of the service in England and Wales, 1829-1965 (Vol. 24). Londres: Heinemann Educational Publishers.
Minayo, M. C. D. S., Souza, E. R. D., & Constantino, P. (2007). Riscos percebidos e vitimização de policiais civis e militares na (in) segurança pública. Cadernos de Saúde Pública, 23, 2767-2779.
Senna, I., Iglesias, F., & Vasconcelos, A.M.N. (no prelo). Parque público e criminalidade: Preditores ambientais da percepção de (in)segurança. Gerais: Revista Intersinstitucional de Psicologia.
Wilson, J. Q., & Kelling, G. L. (1982). The police and neighbourhood safety: Broken windows. Atlantic Monthly, 3, 29-38. Disponível em https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1982/03/broken-windows/304465/
Zimbardo, P. (2012). O efeito Lúcifer: Como as pessoas boas se tornam más. Rio de Janeiro: Record.